Capa da edição anual da revista Time com as pessoas do ano.
A Revolução de 2017. No segundo semestre do ano passado, algumas atrizes famosas e nem tão famosas começaram a acusar o produtor Harvey Weinstein de lhes ter assediado ou até estuprado. As suas narrativas formaram uma história comum e um perfil predatório de homens bem sucedidos que até então estava escondido debaixo do tapete. Mas agora não está mais.
Pela primeira vez, uma mudança social começou com mulheres famosas e privilegiadas e se espalhou por vários setores da sociedade. O movimento #MeToo (Eu também) criado pela ativista Tarana Burke se tornou viral no Twitter e outras redes sociais pela atriz Alyssa Milano- foi então a oportunidade para várias mulheres revelarem situações de assédio e violência sexual sofridas no ambiente de trabalho. A tag foi mencionada por mulheres de diversos países, classes sociais e ramos de trabalho. Logo no primeiro dia do ano, Reese Witherspoon e outras atrizes se juntaram para lançar o movimento Time's Up (acabou o tempo) sob o qual várias atrizes protestaram usando preto na cerimônia do Globo de Ouro deste ano, a primeira grande premiação da temporada.
Mas nada surge de repente, antes de #MeToo e Time's Up, as mulheres do Vale do Silício denunciaram ambientes de misoginia em suas empresas, tendo acabado especialmente mal para o Über, ainda no começo do ano. Kesha batalhou na justiça para ver seu abusador ser punido e não teve a satisfação de ver a justiça sendo feita- um caso amplamente acompanhado pelos portais de notícia ainda em 2016. Acusações feitas em 2010 contra o ator Casey Affleck de produtoras do filme dirigido por ele voltaram a ganhar atenção ano passado com o sucesso do ator nas premiações- que não foi alterado pelas acusações, mas também não foi bem aceitado por muitas partes, inclusive pela atriz que lhe entregou o Oscar e outras prêmios precedentes, Brie Larson, que chegou a deixar de aplaudir o ator após sua conquista do Oscar. Quebrando a tradição do vencedor de um ano entregar o prêmio para o vencedor do ano seguinte, Casey Affleck não foi convidado para participar da cerimônia do Oscar este ano; além do caso mais atual de James Franco, que foi indicado a vários prêmios antes de ser acusado de assédio e ficou ausente entre os indicados ao Oscar. No âmbito nacional, este foi o ano em que um ator com uma longa carreira nas telenovelas, José Mayer, foi acusado de assédio por maquiadoras e outras profissionais da equipe de apoio, que ganharam apoio de atrizes e atores da Globo, causando a perca de um papel que o ator estava escalado para interpretar.
O produtor cinematográfico Harvey Weinstein.
Entre esses dois momentos, as acusações contra Harvey Weinstein mudaram o jogo, o que foi seguido pela exposição do comportamento tóxico de Kevin Spacey e Louis C.K., além de acusações isoladas a James Franco, Ben Affleck, Ed Westwick, entre outros. O que esse momento mostrou, quando atrizes de alto calibre como Angelina Jolie acusaram o produtor com detalhes sobre quando e como o assédio aconteceu e viram seus relatos serem ecoados por dezenas de outros que contavam exatamente a mesma história, foi o que um homem visto como amigável era capaz de fazer quando ninguém estava olhando e a extensão dos casos de abuso, quando só se falava de um profissional de poder em uma indústria- era tudo só a ponta do iceberg . O assédio deixou de ser uma mão no joelho e uma cantada vulgar, mas uma coerção violenta para que mulheres tivessem relações sexuais contra a sua vontade que inclui resistência física e ameaças profissionais ou até de morte. Veículos como The New York Times e The New Yorker decidiram se dedicar a expor mais e mais casos, mais e mais abusadores, dando a palavra às vítimas, o que deu origem a relatos tocantes e emocionantes de atrizes como Lupita Nyong'o e Salma Hayek- também vítimas de Weinstein- que por trás de todo o glamour de suas vidas e carreiras ficaram vulneráveis a um homem fisicamente intimidante ("ele é grande", foi o que várias vítimas disseram ao explicarem o porquê de terem tido dificuldade em sair da situação) e com poder para alterar o rumo de suas suas carreiras.
Salma Hayek (dir.) e Lupita Nyong'o (esq.), duas das 84 mulheres que acusaram Harvey Weinstein de assédio.
Em apoio às atrizes de Hollywood, trabalhadoras rurais latinas escreveram uma carta de solidariedade e compartilharam suas próprias histórias de assédio em ambiente de trabalho, escrita em nome de aproximadamente 700 mil mulheres. Monica Ramirez, uma das co-fundadoras da Alianza Nacional de Campesinas, a organização que assinou a carta das agricultoras, acompanhou a atriz Laura Dern na cerimônia do Globo de Ouro; atitude replicada por Michelle Williams, que levou Tarana Burke como acompanhante, Emma Watson com Marai Larasi, Susan Sarandon com Rosa Clemente, Amy Poehler com Saru Jayaraman, Emma Stone com Billie Jean King, Meryl Streep com Ai-Jen Poo, Shailene Woodley com Calina Lawrence e Angelina Jolie com Loung Ung, todas ativistas de diferentes comunidades que trabalham em prol das mulheres, principalmente as de minorias étnicas.
Michelle Williams (esq.) e Tarana Burke (dir.) no tapete vermelho do Globo de Ouro.
A Revista Time, que sempre elege uma personalidade conhecida como pessoa do ano, elegeu não só uma, mas um conjunto de mulheres que chamou de "silence breakers" (rompedoras de silêncio): mulheres que denunciaram publicamente o assédio sofrido em seus ambientes de trabalho. Na edição da revista dedicada a elas, todas falam do medo que sentiram, não o do momento do assédio, mas o que tiveram antes de falar publicamente sobre o que aconteceu e dar nome ao culpado: receio sobre o que seus familiares iriam pensar, o que seria de suas reputações e carreiras, também falam do arrependimento, de como deixaram os agressores livres para continuar abusando outras mulheres durante o tempo em que ficaram em silêncio sobre a violência que sofreram. Mas todas deixam o sentimento de culpa, o que acompanha tantas mulheres que tentam enfrentar homens poderosos, junto com o medo já abandonado dizendo: "eu sofri abuso e estou falando para que as pessoas conheçam a minha história e outras mulheres não sofram o mesmo."
Como muitos sabem, nem todo mundo se convenceu da validade dos testemunhos das mulheres do #MeToo e Time's Up; um grupo de artistas e acadêmicas francesas assinaram uma carta que questionava as causas e os efeitos da onda de acusações de assédio. Elas confundiram as noções de violência sexual e sexualidade, o que não é de hoje. Defender liberdade sexual não significa apoiar atitudes masculinas tóxicas (as quais não são intrínsecas à masculinidade), violência sexual se refere a violência e não a sexualidade, é crime e não um exercício saudável de sexualidade masculina; homens não assediam e estupram porque se sentem extremamente atraídos ou não conseguem controlar seus instintos sexuais, mas porque sabem que podem, que têm um passe livre para isso, não importa as leis que eles mesmos assinaram, porque as mulheres que denunciavam estupro ou assédio nunca eram levadas à sério. Mas o tempo deles acabou, como Oprah Winfrey disse no Globo de Ouro, e o que vem agora é, para mencionar novamente o discurso de Oprah, um tempo "onde ninguém precisará dizer 'eu também' de novo."